Onde está o "camisa 10"?

No futebol atual, um dos grande males da opinião pública é continuar se baseando em teses ultrapassadas para tentar entender ou explicar o jogo. Talvez a principal - e mais preocupante - delas seja em relação ao “camisa 10”, aquele que, teoricamente, é o armador da equipe, o cara que pensa o jogo, o jogador que “pifa” o companheiro, etc.

Primeiramente, é preciso entender que o futebol passou por grandes transformações nos últimos anos. Novos métodos de treinamento, marcação por zona, linhas próximas, tudo isso alterou a forma do jogo ser pensado e, por consequência, fez com a que a distribuição e as funções dos jogadores em campo mudassem.

No futebol moderno não existem mais posições fixas. Os 11 jogadores fazem parte de um organismo vivo, que trabalha em conjunto tanto no momento de defender quanto no de atacar. Isso faz com que o atacante marque, o volante chegue na área para finalizar e o zagueiro construa a jogada, pouco importando o rótulo posicional que lhe é atribuído.

E onde fica o “camisa 10” nesse processo? Infelizmente, para os amantes do futebol clássico, ele desapareceu. Isso, é claro, se considerarmos aquele meia-armador que fica fixo na intermediária de ataque esperando receber a bola para acionar os atacantes.

Com o trabalho de treinadores como Diego Simeone, que joga com linhas absurdamente próximas, não há nem espaço nem tempo para que esse meia-armador possa girar e escolher a melhor opção de passe. Consequentemente, a construção das jogadas deve vir de trás, com alas/pontas bem abertos, dando amplitude, e jogadores centrais mais recuados com capacidade para girar a bola com qualidade.

Isso explica, por exemplo, o sucesso do Real Madrid na última Champions. Kroos e Modric, teoricamente volantes, tem qualidade de passe e leitura de jogo simplesmente absurdas: são os “armadores” do futebol atual - jogadores que pensam o jogo e ditam o ritmo da equipe, com a diferença de que atuam mais recuados.

E Özil e James Rodríguez, por exemplo, não são os tradicionais camisas 10 no futebol moderno? Embora tenham características que geralmente são associadas a meias-armadores, ambos tiveram de se adaptar à nova realidade do futebol. Özil se habituou a jogar pelas pontas, onde utiliza sua qualidade de passe para aproveitar a infiltração dos companheiros. O mesmo ocorre com James, que na seleção colombiana também atua como um segundo atacante, se movimentando bastante entre as linhas adversárias e chegando na área para finalizar.

James caindo pela ponta esquerda no segundo gol do Real contra o Sporting: não existe mais meia-armador preso e centralizado.
É importante frisar que qualidades como visão de jogo e lançamentos em profundidade ainda são virtudes essenciais no futebol. Contudo, o atleta não precisa atuar naquela mesma posição fixa e centralizada para executá-las. Circular em várias faixas do gramado é fundamental para não só criar linhas de passe, mas também gerar espaços para os companheiros.

Portanto, se sua equipe está criando poucas oportunidades de gol, o problema é sistemático, e não a simples falta de um “camisa 10”. Trazendo para uma realidade mais próxima, quem são os armadores do Palmeiras e da seleção brasileira, por exemplo? Tanto na equipe de Cuca quanto na de Tite, o 4-1-4-1 utilizado pelos treinadores faz com que todos os atletas tenham múltiplas funções, sendo a construção das jogadas uma responsabilidade mais coletiva do que individual. Tchê-Tchê, Moisés, Renato Augusto, Neymar… embora com características muito diferentes entre si, todos têm a função de encontrar espaços e buscar a melhor opção de passe.

A superação de teses pragmáticas (que ainda circulam em grande quantidade na mídia e na opinião pública) é fundamental para que o debate no futebol brasileiro seja mais refinado. Da mesma forma que a tecnologia, o futebol também evolui constantemente - e é responsabilidade de quem se interessa pelo assunto acompanhar essas mudanças.

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